terça-feira, 10 de março de 2020

Monstros, Hitler, Suzy, empatia etc

Existem monstros perfeitos? Existem pessoas totalmente monstruosas?

Muitos falam que Adolf Hitler foi um monstro, e eu concordo. Ele fez, e levou uma nação (aliás, mais de uma) a fazer coisas realmente monstruosas. Mas nem ele foi o monstro prefeito, alguém totalmente monstruoso.

O ator Bruno Ganz foi muito criticado pela forma com que ele interpretou Hitler no filme A Queda! As Últimas Horas de Hitler, pois ele mostrou um lado humano de Hitler, personagem histórico que muitos veem como um monstro. Ele interpretou um Hitler monstruosamente humano, e humanamente monstruoso. O Hitler interpretado por ele tinha um lado humano, que poderia ser doce e amigável com as pessoas, especialmente com algumas pessoas, mas que tinha um lado desumano monstruoso e horrível. (O filme começa com ele sendo empático e atencioso com uma candidata a secretária que estava nervosa na entrevista.) O Bruno Ganz fez uma atuação impressionante, sensacional.

O que talvez tenha assustado muita gente é que isto possa acontecer, que ninguém é completamente monstruoso como alguns pensam. Muitas pessoas esperavam que ele interpretasse um Hitler totalmente monstruoso, e não um parecido com o real. Isto seria caricato e irreal.

O outro lado que assusta, e que poucos querem admitir, é que todos são monstros em potencial (Você mesmo que lê este texto, eu, eles etc.). Todos podem ser monstros dependendo da situação, do contexto, de quem seguem etc. E esta interpretação de Hitler deixou isto exposto. Todos tem um monstro em potencial dentro de si.

Este monstro tem que sempre estar sendo questionado, contido, desconstruído, e isto exige um trabalho grande de autocrítica constante, de autovigilância constante, que poucos estão acostumados a fazer. E mesmo assim não há garantias.

Estudar história, especialmente entendendo os processos históricos, ajuda muito nisto, pois dá referências, exemplos e críticas. O trabalho de Hannah Arendt sobre banalização do mal é importante nisto. Como pessoas se tornaram monstros sem se darem conta.

Mas já vi gente alimentando seus próprios monstros, e alimentando uns dos outros, intencionalmente. Isto tem consequências, e não são boas. Em alguns casos por acharem isto divertido.

A empatia é uma das melhores formas de conter seus monstros. É entender e se colocar no lugar dos outros. É entender o sofrimento dos outros. É entender como os outros pensam e agem. E infelizmente a empatia está em baixa. Em alguns parece nem mais existir. E a raiva é uma das coisas que mais anulam a empatia.

E a Suzy? Sim, ela cometeu uma monstruosidade. O crime que ela cometeu é um destes que doem só de imaginar, de imaginar as consequências, de se colocar no lugar da vítima, da sua família etc. Isto se o que dizem que ela cometeu é real. E ela está cumprindo uma longa pena por causa disto, como tem que ser.

Mas ela é um monstro perfeito? Ela é alguém sem sentimento? Duvido. Praticamente ninguém é assim, se é que existe alguém assim. Nem Hitler foi.

Será que ajuda a uma pessoa ser mais humana, mais empática, a entender que cometeu algo errado etc, se a taxarmos de monstro, dizer que não tem salvação, não tem solução? Será que isto não seria incentivo para ela se tornar mais monstruosa ainda, para assumir de vez este papel que jogam nela? Será que não deveria ser mostrado a ela que existe outra opção, outra forma de ser? 

A TV Globo poderia ter evitado toda esta polêmica se selecionasse as entrevistadas pelas fichas criminais, mas isto complicaria o processo de produção, e não estava em pauta. Os crimes delas não estavam em pauta. Poderia ter escolhido presas com penas menores, pois penas mais longas costumam significar crimes sérios. Teria se protegido e protegido a Suzy. Mas esta polêmica deveria ser evitada? Ou deveria ser jogada no ar mesmo? Acho que uma entrevistada com pena longa poderia reforçar a matéria, a pauta.

Quando soube que a Suzy estava a 8 anos sem visitas eu pensei "Pena longa. Deve ter sido algo sério.". Me bateu alguma curiosidade, mas pequena. Achei que não importava. Era alguém que precisava naquela hora de uma manifestação de empatia. De se sentir gente. E acho que foi o mesmo que o Dráuzio Varella pensou.

Se sentir que pode ser gente pode fazer parte de um processo de reintegração na sociedade.

E por que taxá-la como monstro? Por que jogar o seu ódio contra ela, que já está condenada e presa? Do que adianta? Lá atrás falei que o ódio é eficiente para anular a empatia, e que ter empatia é uma forma de evitar que a pessoa se torne um monstro. Será que ao destilar ódio contra ela você estará se transformando em um monstro? Desejar o mal a uma pessoa que fez um mal, e já está sendo penalizada por isto, não estaria te transformando em um monstro? O que você imagina nestas horas de ódio? Monstruosidades?

Crimes sexuais são hediondos, mas tem gente que explora isto incentivando penas hediondas contra estes criminosos. Será que estes incentivadores não estariam alimentando os monstros dentro das pessoas, incentivando também que elas se tornem monstros?

Será que quem diz "bandido bom é bandido morto" já não se tornou um monstro? Não perdeu a sua humanidade desumanizando o outro, rotulando o outro como monstro?

E eu acho que a polêmica realmente deveria ser jogada no ar. Ela serve para discutir, para pensar, e ver o nível de empatia e como as pessoas encaram a situação. Mas também acho que muita gente não está pronta para ela.

PS: Antes que alguns falem, eu não estou defendendo Hitler, nem a Suzy, de seus crimes, e nem comparando ele com ela (Seria uma grande desonestidade intelectual fazer uma comparação direta entre estas duas pessoas.). Estou só tentando entender eles como pessoas, e não taxá-lo simplesmente como monstros, pois acho isto contraproducente. Contraproducente a ponto de ajudar a criar monstros.

terça-feira, 3 de março de 2020

Trabalho informal e epidemias

Um problema da maioria dos trabalhos informais é que as pessoas tem que trabalhar senão não ganha dinheiro para se sustentar.

Um trabalho formal tem licença médica, e a pessoa fica em casa de forma remunerada, sem se preocupar com o seu sustento, em caso de doença.

Em um trabalho formal, com uma quarentena e todos ficando em casa, os patrões podem ter que arcar com estes salários. Pode entrar em um esquema de férias coletivas etc.

Mas imagine o nosso cenário em caso de epidemia.

Segundo uma notícia que li, estamos com cerca de 41% de trabalhadores informais do total da nossa força de trabalho. Imagina uma boa parte destes tendo que ir trabalhar, para ganhar seu sustento, estando doentes. Quanto ajudariam a espalhar uma epidemia.

E ainda, imagina a perda de dinheiro destes trabalhadores informais no caso de uma quarentena geral, ou de fortes recomendações para não sair de casa. Menos gente nos trens, nas ruas etc, menos clientes para os vendedores de rua, menos dinheiro para eles, menos circulação de mercadorias, e lá se vai toda a economia.
Sim, este é um cenário imaginado, mas baseado em uma situação plausível.

Atualização em 06/03/2020:

Acho que um jornalista pensou algo parecido com o que pensei, mas em outro lugar, e assim hoje li esta excelente matéria. O que pensei pode acontecer nos EUA com trabalhos formais.