quinta-feira, 23 de abril de 2020

Destrinchando uma manipulação

Não é difícil criar uma manipulação, e muita gente cai nelas facilmente. Quanto mais emotiva e crédula a pessoa, mas facilmente ela cai, especialmente se esta manipulação atende seus preconceitos e suas crenças. Se ainda juntar um bom design, a coisa fica mais eficiente ainda.

Sempre que vejo algo apelando para sentimentos, mais cético eu fico sobre esta coisa. Mas eu sou raro. Poucos pensam assim.

Basta pensar, se apelam simplesmente para as emoções é porque não tem argumentos.

Vejamos a esta imagem.


Começa falando "CONFISCO DAS EMPRESAS SERÁ VOTADO HOJE". Sim, em maiúsculas, em vermelho e em negrito para chamar bem a atenção, dando ênfase nas palavras confisco e hoje. A palavra confisco remete ao trauma do governo Collor, e de perda do dinheiro etc. A palavra hoje dá mais urgência, especialmente que é a palavra com a maior letra no cartaz. Diz que tem que se agir logo, e não há tempo para pensar. Mas aí tem outra pegadinha, hoje é qualquer dia, não importando qual seja, que se vê este cartaz.

Sim esta imagem é um tipo de cartaz.

Aliás, confisco das empresas parece que o governo vai tomar as empresas dos empresários, estatizar forçadamente. Isto é normalmente associado com "comunismo". Será que o vermelho tem alguma intensão de fazer esta associação? Acho que neste caso não. Foi só uma escolha estética.

O cartaz tem ao fundo placares que parecem placares de votação, ou são para passar esta ideia. Colocar logo no início na mente de quem vê este cartaz a ideia de votação. E estes placares estão o alto para começar logo com a ideia, reforçando pela palavra votado.

Depois tem um parágrafo com letras menores. Este parágrafo usa 3 tamanhos de letras em duas cores.

Começa dando destaque para o nome do projeto, usando a letra de tamanho intermediário, e está em branco e em negrito. Ela estabelece o alvo, o inimigo, que é um Projeto de Lei Complementar.

As letras maiores (em maiúsculo, negrito e em branco) são palavras chaves para marcar o seu pensamento, moldar a sua forma de pensar. As expressões e palavras empréstimo compulsório, confiscar e parte do lucro das empresas estão em destaque. Mas não diz quanto é esta parte do lucro, quais empresas etc (Voltarei a este ponto adiante.). Dá a impressão que pode ser uma parte grande dos lucros de todas as empresas.

As letras menores, em cinza, são para completar o parágrafo, para dar um texto, para fazer a ligação entre as partes destacadas. O interessante é que junto da palavra confiscar aparece a palavra temporariamente, sem destaque, para ficar marcada a ideia de confisco, e não de temporário.

Depois deste parágrafo aparece em destaque (em vermelho, com letras maiúsculas, maiores e em negrito) a posição dos autores do cartaz. Isto já dava para ver, pois ele seguia esta linha de pensamento por todo o cartaz. É uma marcação clara de posição.

No final  ele reforça o que cultivou por todo o texto do cartaz usando letras brancas, grandes, em negrito e itálico. Ele conduziu o leitor acrítico a achar que era um absurdo, e faz isto de novo explicitamente, e ainda afirma que é confisco, e que é roubo generalizado. É a única vez que usa itálico no cartaz.

O cartaz está cheio de adjetivos e palavras fortes, já dando uma opinião e conduzindo a opinião do leitor.

Este cartaz usa (e ainda reforça) o desprezo que os mais ricos e a classe média tem para os impostos. Várias vezes vi pessoas de classe média falando "Imposto é roubo".

E o que os autores do cartaz acham dos impostos? São contra? Imposto é a contribuição para se viver em sociedade.

Quem tem noção de arte e design vê muito bem que este cartaz foi bem feito, bem elaborado, bem pensado em seus detalhes e mensagens. Não foi um leigo qualquer. Foi alguém que sabia muito bem o que estava fazendo. É um trabalho profissional. (Será que é por isto que existem campanhas contra a arte, para que as pessoas não a entendam, e sejam mais facilmente manipuláveis?)

Muita gente vai ler este cartaz, acreditar e ficar indignada, se deixando inconscientemente ser conduzida por ele. Ele foi feito para isto.

Mas do que se trata este Projeto de Lei Complementar?

Toda campanha de propaganda tem público alvo, e cartazes são meios de propaganda. O público alvo deste cartaz é basicamente a classe média, o pequeno empresário, o profissional liberal etc, que vai ficar com medo, indignado, com raiva, por ver o seu lucro confiscado. E também são pessoas crédulas que não pesquisam antes de emitirem opinião, antes de compartilharem etc. Aliás, foi assim que eu recebi este cartaz, de alguém que compartilhou em um grupo de extrema direita no qual me inscreveram. (Se quiserem, eu posso publicar algumas das pérolas que vi lá no pouco tempo em que estive escrito.)

Mas ao contrário dos membros deste grupo, e principalmente de quem compartilhou, resolvi pesquisar. O Google está aí para isto. E foi MUITO fácil. Bastou usar o projeto de lei.

Mas antes de mostrar o projeto de lei e discutir o seu conteúdo, vamos a um ponto que alguns, com ódio da esquerda, medo e ódio de "comunistas" devem pensar. Alguns devem pensar que isto é algum projeto de lei de algum "comunista de esquerda", de algum petista, do PCdoB, do PSOL etc.

O Google me deu este link. Nele vi que o autor do Projeto de Lei Complementar é o deputado federal pela Paraíba Wellington Roberto do PL, o Partido Liberal. Sim, foi a própria direita que propôs este Projeto de Lei Complementar. E atualmente ele é um dos líderes de um bloco de partidos de direita e centro, que inclui o MBD, o PSDB, PL, PP, DEM etc.

Teria sido engraçado se eu tivesse divulgado isto naquele grupo de direita do WhatsApp que tinham me colocado, onde vi este cartaz. Pena que me tiraram de lá. Pena que não vi isto com tantos detalhes a tempo de postar lá.

Além disto, este mesmo bloco de partidos pediu urgência ao projeto, como pode ser vista no final da notícia aqui.

Eu li a notícia, coisa que os indignados que estão espalhando e a assustada classe média não fez. É só 10% dos lucros para empresas de patrimônio líquido igual ou superior a... 1 bilhão de Reais. Sim, isto é gente muito rica, e não classe média pé rapada.

E o projeto de lei tem até a forma, tempo, taxa de juros etc, na qual vai ser devolvido este dinheiro. Será mais ou menos como um investimento forçado em títulos do governo pagáveis em 4 anos.

Está parecendo mais um investimento para grandes empresas e empresários do que algo que vai colocar eles no prejuízo. Estariam forçando o estado a aceitar um empréstimo. Mas tem a opção do governo não usar este dinheiro, ou parte dele, e devolver logo depois da epidemia.

Será que estão propondo isto como alternativa ao imposto sobre grandes fortunas e ganhos de capital?

Ainda falta um ponto que não analisei. Ao contrário de muitos cartazes, memes etc, este tem uma assinatura. Isto representa que esta pessoa, ou este grupo, tem alguma pretensão, quer ser reconhecido.

Pesquisando tive uma boa surpresa. O Vinicius Poit é vice-líder do partido Novo no congresso.

Sim! É a direita contra a direita. Ou seja, não tem sequer um dedo da esquerda na história. Nenhum "comunista" do PT, PSOL, PCdoB etc.

Isto remete a outra coisa. Como eu já disse, Este cartaz é uma campanha tendo a classe média como alvo. A finalidade dele é colocar a classe média para defender uma causa que no fundo não é dela, e sim, de pessoas muito ricas, já que este Projeto de Lei Complementar só trata de pessoas muito ricas e de empresas muito grandes. Não é raro, sendo na realidade é muito comum, que a classe média seja usada para defender as causas dos ricos, e não delas mesmas. Este seria só mais um caso.

É incrível como as pessoas caem em coisas assim. As pessoas não são educadas para serem críticas, céticas. Infelizmente são criadas para serem crédulas e obedientes, inclusive (talvez principalmente) a classe média, que deveria ser uma espécie de elite cultural, e pensa que é, mas na realidade não é mesmo. No geral é muito tapada. Por estas que acho que boa parte da educação da classe média foi ruim.

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