quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Capitalismo Financeiro, empréstimos, Mais Valia, Crise de 2008 etc

Eu estou a algum tempo querendo escrever um pouco sobre Capitalismo Financeiro, sobre empréstimos, um pouco sobre a crise de 2008 etc, então resolvi explicar tudo em um texto só. Acho que dá para ser conciso e didático falando isto tudo de uma vez.

Quem ler este artigo vai entender (assim espero) bem por que é, mesmo com juros baixos, muito mais barato juntar o dinheiro do que fazer um empréstimo. E entender um pouco como funciona a nossa economia, o sistema financeiro, a nossa sociedade etc.

Capitalismo Industrial

No Capitalismo Industrial os donos dos meios de produção exploram os seus funcionários para obter lucro. Alguns países, devido a sua mão de obra barata, parecem estar nesta fase do Capitalismo Industrial. Outros foram para fase seguinte.

Na produção de um bem existem vários tipos de custo. O da matéria prima, impostos sobre a venda etc (custos variáveis, pois variam conforme a produção), o do local de produção, aluguel da fábrica etc (custos fixos, pois não variam conforme a produção), e da mão de obra.

Um operário vende a sua força de trabalho para o empregador, e o salário dele faz parte do custo do produto que produz. Mas imagine que parte das horas trabalhadas por este operário já bastasse para produzir o suficiente para pagar os custos e o salário dele. O que acontece com o que sobra? Fica com o empresário e é chamado de Mais Valia. Ou também chamado de lucro por outros.

Quanto mais este operário produzir, mais o custo dele será diluído nos custos do produto, barateando-o. Se a produção do operário aumenta - com melhorias de métodos de trabalho, ferramentas, mais horas trabalhadas etc - mais o salário dele será diluído entre os produtos produzidos. Isto aumenta a Mais Valia, mas tipicamente os patrões ficam com este ganho a mais, e/ou baixam o preço do produto, mas raramente repassam para o funcionário ou diminuem as suas horas trabalhadas etc.

Assim vem o lucro do empresário.

A ascensão do sistema bancário/financeiro

Eu me lembro de histórias de que antigamente pouca gente tinha conta bancária. As pessoas recebiam os pagamentos, os seus salários, em dinheiro, em um caixa de banco, em um carro forte que levava o dinheiro para empresa, na tesouraria da empresa etc. Mesmo pessoas de classe média recebiam assim.

Atualmente o sistema bancário atende uma grande quantidade de pessoas. Quase todos os assalariados, e talvez todos acima de um certo nível de salário, possuem ao menos uma conta bancária. Isto se deveu a muitos fatores, como o período no qual tivemos uma inflação muito alta e os bancos davam rendimentos diários, riscos de perda e roubo, popularização da Caderneta de Poupança na década de 1970 etc. Assim os bancos passaram a ter mais dinheiro em caixa.

Então a criminalidade, a insegurança (que pode existir mesmo sem existir a criminalidade), a inflação alta etc, atenderam aos interessados do sistema bancário no sentido de aumentar a clientela.

Mas o Sistema Bancário tem que se sustentar. Ele faz isto de diversas formas simultaneamente, com as taxas bancárias, com as comissões a cada vez que é feita uma compra com cartão de crédito ou débito, com as anuidades de cartões de crédito, com os juros dos empréstimos etc. Talvez a principal fonte de custeio do bancos, do sistema financeiro, sejam os juros dos empréstimos.

E assim entramos no Capitalismo Financeiro

Emprestando dinheiro em massa, seja com empréstimos pessoais, seja com cheque especial, seja por empréstimos consignados ou qualquer outra forma, pode-se ter um bom retorno com juros.

Se o dinheiro sobra para os bancos, se tem muito capital e muito dinheiro depositado por clientes, ele pode fazer empréstimos, especialmente de longo prazo. Alguns bancos também insistem que seus clientes façam investimentos, inclusive os de longo prazo, o que é uma forma de obter mais dinheiro em caixa. Assim o banco lhe dá uma remuneração por deixar o dinheiro parado lá, enquanto usa o seu dinheiro para emprestar e obter juros.

Mas o que é o juros? Num ponto de vista meio grosseiro é uma Mais Valia obtida sobre alguém que não é o seu empregado. Parte dele sustenta o sistema bancário/financeiro, parte serve para pagar quem deixou o dinheiro aplicado no banco, parte cobre os prejuízos como clientes que dão calote de alguma forma (inclusive os que falecem antes de pagar completamente o empréstimo), e uma parte são os lucros.

Se o dinheiro aplicado pelos clientes do banco rendeu mais do que a inflação, estes clientes também tiveram um lucro.

Então, quando alguém paga um empréstimo, ele está pagando o dinheiro que ele pegou, e com os juros deste empréstimo está ajudando a sustentar todo um sistema bancário/financeiro por trás. Ou seja, algumas das suas horas de trabalho mensais estão ajudando a sustentar o sistema bancário/financeiro.

Um exemplo numérico

Para ajudar a entender quanto os juros podem ser caros, vamos recorrer a um exemplo numérico.

Vamos imaginar um empréstimo consignado, pois costuma ter juros mais baixos, é descontado em folha de pagamento, e tem limitação legal de quanto do salário pode ser usado nas prestações. Vamos imaginar o juros de 2% ao mês, com 36 prestações, que são trabalhadas 880 horas mensais (8 horas por dia, 5 dias na semana e 22 dias ao mês), e o limite legal é de 30 % do salário que pode ser usado em pagamento de empréstimos consignados.

Então temos:

880  x 30% = 880x30/100 = 264

Ou seja, no máximo 264 horas trabalhadas ao mês podem ser usadas para pagamento de empréstimos consignados. E digamos que o trabalhador pegou o máximo empréstimo possível no caso. Então, em 36 meses, 9504 horas (264 vezes 36) trabalhadas serão para o pagamento do empréstimo.

Seguindo a fórmula obtida nesta página (também mostrada abaixo), o fator de cálculo da prestação é de (limitando as casas decimais):

CF = 0.02/( 1 - 1/(( 1 + 0.02 )36 )) = 0.039233

Para saber o empréstimo máximo:

PMT = Empréstimo x CF => Empréstimo = PMT/CF

Como PMT é igual a 264, e CP é igual a 0.039233:

Empréstimo = 264/0.039233 = 6729 horas de trabalho.

Ou seja, se pedir um empréstimo equivalente a 6729 horas de trabalho, a juros de 2% ao mês, para pagar a em 36 meses com parcelas fixas, pagará 9504 horas, ou seja, 2775 horas de trabalho de juros, para sustentar o sistema bancário/financeiro.

Por curiosidade, se esta mesma pessoa juntar o valor destas 264 horas de trabalho por mês, atinge o valor do empréstimo em quase 26 meses. São 10 meses antes, e com uma sobra.

6729/264 = 25.49

Ou seja, vale muito mais a pena juntar o dinheiro do que fazer o empréstimo.

Vale notar que o juros real anual de um empréstimo à 2% ao mês é de 26.8%, e não devem existir muitas aplicações que rendam isto ao ano, se é que existe alguma.

Então, se você faz um investimento que lhe dê 1% ao mês por um ano, o banco lhe dará 12.7% a mais do que foi investido. Este dinheiro investido será emprestado a 2% ou mais, pagando o seu investimento, e com a sobra de dinheiro pagará os seus custos operacionais (funcionários, propaganda, custos das agências bancárias etc), e ainda irá tirar o lucro. Parte deste lucro irá para acionistas, parte pode voltar como dinheiro a ser emprestado.

Mas não é tão simples. Bancos são complexos de serem geridos, tem muitos regulamentos, e só funcionam bem em escalas grandes. Portanto nem pense em montar um banco.

E o que aconteceu nos EUA em 2008?

Ganância.

Foram anos emprestando dinheiro com juros altos para pessoas com poucas condições de pagamento. Avaliavam mal a capacidade de pagamento destas pessoas, e estavam de olho nas chances de lucro com os juros altos.

Alguns dizem que estavam dando comissões aos vendedores de empréstimos, então eles procuraram avidamente para quem emprestar, sem avaliar direito as garantias dos empréstimos e as capacidades de pagamento. Segundo alguns, estes vendedores e/ou os que pediam empréstimos, para aumentar o empréstimo (e a comissão do vendedor do empréstimo), avaliavam mal as garantias, supervalorizando-as. E nos EUA uma garantia típica é o imóvel, a casa onde a pessoa mora. É a famosa hipoteca.

Todo um sistema de olho em possíveis lucros, ganância, e sem mecanismos eficientes de controle, se inchou de empréstimos que não eram saudados. Os bancos começaram a ficar sem capital, a ter perdas, então resolveram executar as hipotecas dos inadimplentes. Em muitos casos descobriram que os imóveis não valiam o que foi emprestado. Como os bancos precisavam recuperar o dinheiro, colocaram estes imóveis à venda. Começou a sobrar imóveis no mercado, o que aumentou a competição, e baixou os preços. Então, mesmos os imóveis que valiam o valor emprestado, passaram a não mais valer mais com a queda dos preços.

Alguns bancos não resistiram. Não conseguiam pagar seus investidores, foram descapitalizados etc. E a crise se espalhou quando alguns começaram a repassar os empréstimos podres para outros, e em alguns casos, misturados aos bons.

Este dinheiro, vindo dos empréstimos, circulando deve ter aquecido a economia, mas não parece ter gerado realmente riqueza para as pessoas. Este aquecimento econômico não as tornou os devedores capazes de saudarem os empréstimos.

Se uma economia tem a tendência a concentrar renda, fatores que aqueceriam a economia podem não surtir muito efeito, pois qualquer riqueza que surja pode terminar nas mãos dos beneficiados pela concentração da riqueza.

Para terminar

Um sistema bancário/financeiro é necessário para a nossa economia, mas pode ser que ele esteja poderoso e influente demais, e assim acaba desestabilizando a economia, diminuindo a produção e o consumo. Ele estaria sendo o meio pelo qual algumas pessoas com muito dinheiro estariam ficando com mais dinheiro, um meio de concentração de renda.

Voltemos ao exemplo do investimento de rendimento de 1% ao mês. Se a inflação for inferior a isto, o investidor está ganhando dinheiro só deixando-o parado no investimento, sem produzir realmente nada, e não consumindo. Ele está ganhando sem trabalhar, aliás, de certa forma está sugando o trabalho dos outros, que se iludiram em pegar uma quantia alta de uma vez e pagar aos poucos, ou que tiveram de pegar algum empréstimo por alguma necessidade.

Alguns investidores chegam a viver, e alguns até muito bem, só com seus investimentos, de certa forma sugando os outros, sem produzir nada. Não é o caso de um trabalhador, ou até mesmo um empresário, que produz e tem um dinheiro guardado, investido, para alguma necessidade, para adquirir algo caro etc, mas de gente com muito dinheiro, que cada vez mais tem mais dinheiro, sem produzir nada.

A ganância do sistema bancário/financeiro é um grande risco, e por isto este sistema tem que ser muito regulado, monitorado etc. Parece que isto faltou nos EUA nos anos anteriores à 2008.

Notas

Sei muitos detalhes podem, e devem, estar errados, mas a ideia é explicar a situação para leigos. E eu posso amadurecer e até mudar de ideia em alguns pontos com o tempo.

A taxa de juros do exemplo foi escolhida por chute, e depois pesquisada na Internet. Nos sites com comparações que vi, a taxa de 2% é até mais baixa do que quase todas as praticadas no mercado. Um exemplo está aqui, que é um texto não datado, mas menciona que a pesquisa foi feita no site do Banco Central em 15/09/2016.

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